No dia 29 de Outubro, pelas 20h05, eu estava, ingloriamente, à porta da UMa à espera que aparecesse o Hildegardo e mais alguém, desta vez não para irmos directamente para a nossa conversa ajantarada mas para começarmos por umas observações. Mas o Hildegardo não apareceu até às 20h25, hora em que decidi ir ver se ele e/ou mais alguém já estaria(m) no restaurante por alguma carga de desentendimento. De qualquer forma, o céu não estava muito famoso, com poucas abertas, e a esperança de fazer o projecto com sucesso era pequena – o objectivo era participar na Great World Wide Star Count (GWWSC) que começava precisamente nessa Sexta e terminava duas semanas depois (windows2universe.org/starcount). Tem objectivos muito semelhantes aos de outro projecto em que já tínhamos participado durante uma anterior Sexta Astronómica (Globe at Night) – a 12ª, realizada no dia 1 de Março de 2008: medir a poluição luminosa em vários locais do mundo pela contagem/observação de estrelas em constelações escolhidas. Apenas esta é pouco antes do início da Primavera e aquela é pouco depois do início do Outono. Mas a hora tinha chegado de ver se ia haver Sexta Astronómica ou não (e uma hora depois do pôr-do-Sol já tinha sido concluída às 20h20).
Assim que acabei de estacionar perto do restaurante do costume, pelas 20h30, eis que me liga o Hildegardo a dizer que ia chegar atrasado. Foi mesmo a tempo pois pareceu-me que não estava ninguém no Restaurante e mais cinco minutos e eu ia era embora para casa. Assim, esperei pelo Hildegardo dentro do restaurante, onde ele chegou pelas 20h40. Começámos por falar na GWWSC e no projecto do Hildegardo dentro do novo GAUMa (motorização do dobsoniano). Entretanto pedimos a comida que, por estes dias, demora bastante a ser servida naquele restaurante. Como combinado, o Elder chegou por volta das 21h35, ainda para jantar (também como lhe sugeri) pelo que após ele ter pedido (e nós mal tínhamos começado a comer) começámos a falar sobre o tema da noite.
O tema, escolhido por mim devido a ser um recente “hot topic”, foi “O objecto mais distante conhecido”. Tudo despoletado por um artigo que tinha saído na Nature uma semana e um dia antes (no dia 21/10/10), pois a Nature sai semanalmente às Quintas-Feiras. Mais concretamente o artigo de Lehnert et al. (2010). Ainda antes de nos debruçarmos sobre este (que acabámos, até, de não o conseguir fazer em pormenor nesse dia antes de sermos “expulsos” do restaurante; mas também não era assim tão fundamental – serviu de motivação para o tema), apresentei uma página dos apontamentos da cadeira “O Universo” (Augusto et al. 2011), na sua versão mais recente, onde se inclui um gráfico que saiu já este ano na Sky and Telescope (Feb 2010, p.14) – Figura 1. E foi aí que, devido a desconhecimento quer do Hildegardo quer do Elder (que não vieram à Sexta Astronómica que já tinha havido sobre o tema – a 11ª do dia 26/01/08 – nem tinham, aparentemente, lido o respectivo relatório), resumi o que sabemos hoje sobre as explosões de raios-gama. A questão das hipernovas estarem, possivelmente, na origem da maioria e estas surgirem, segundo a teoria, devido a uma especialmente assimétrica explosão em supernova de estrelas supermassivas, levou o Elder a sugerir um paralelismo com os lasers do óptico e até propôs a palavra “gaser” (de “gamma-ray amplification by stimulated emission of radiation”) para esses feixes de emissão em raios gama (com todo o desconto que deve ser feito devido aos feixes não serem, nem de perto nem de longe, tão colimados como os dos verdadeiros lasers). Fica a nota da originalidade!
Passámos, depois, ao tema da noite, não sem antes darmos uma pincelada à noção de redshift (z) e do facto das riscas de emissão/absorção terem o seu desvio medido para nos dar distâncias no Universo extragaláctico. Concentrámo-nos, finalmente, no artigo específico da noite e no novo recorde de distância (claro que falámos aqui em objectos pois o imbatível recorde do ruído cósmico de fundo, a z ~ 1100, mantém-se sempre como o máximo dos máximos no Universo observado com radiação electromagnética). Este coloca o objecto astronómico mais distante a z=8.6 (aliás, bem mais preciso: a 8.5549 +/- 0.0002 – Lehnert et al. 2010). O anterior recorde ainda não tinha um ano e era de uma explosão em raios-gama (z=8.2), concluindo com um domínio de quase dez anos das galáxias como recordistas (Figura 1), embora essa descoberta não tenha surgido muito tempo depois do recorde de outra galáxia (com z=6.9). Até à descoberta de Lehnert et al. (2010) era essa a galáxia mais distante conhecida. Ora, de forma muito grosseira, extrapolámos na nossa discussão as três curvas para o futuro (2020), já incluindo a nova descoberta (Figura 2). Para as galáxias temos duas extrapolações, uma feita com a nova descoberta e outra com a antiga. Claro que em 2020 os respectivos valores extrapolados diferem substancialmente (z~10 e z~8.5, respectivamente). Entretanto, os valores extrapolados para as explosões em raios-gama e quasares são de z~14 e z~7, respectivamente. Ou seja, os quasares já estão praticamente no máximo. Isto é coerente com as correntes teorias que colocam o surgimento dos quasares apenas 1 a 2 mil milhões de anos depois do Big Bang: antes terão de se ter formado galáxias e buracos negros supermassivos nos seus centros para que estes as pudessem “activar” (o quasar é um dos tipos de galáxia activa). Assim, a actual descoberta de uma galáxia a z~8.6, quando se tinham passado apenas 600 milhões de anos depois do Big Bang (Lehnert et al. 2010), também é coerente. A nossa extrapolação para z~10 em 2020 (e é claro que a recta não o poderá ser indefinidamente – é possível que siga constante já a partir de 2020, ou antes) implica uma idade máxima de apenas 480 milhões de anos para as galáxias então descobertas (idade do Universo). É possível. De facto, com a reionização nos 200 milhões de anos de idade, as galáxias teriam 280 milhões de anos para se formarem e terem estrelas já em estádios avançados. Finalmente também coerente é a extrapolação, aparentemente radical, para z~14 das explosões em raios-gama. Os 300 milhões de anos passados desde o Big Bang (100 milhões de anos depois da reionização) batem certo com o final da vida das primeiras estrelas que existiram, que terão sido supermassivas, de População III (só com hidrogénio e hélio) e, portanto, com vidas muito curtas (1-10 milhões de anos); para além disso, morreriam, tipicamente, na forma de hipernovas). Aliás, foram estas estrelas as responsáveis pela reionização do Universo (o hidrogénio neutro global passou a estar quase todo ionizado).
Figura 1 - Gráfico da Sky and Telescope (Feb 2010, p.14) com os recordes de redshift ao longo dos anos, para três tipos de objecto astronómico (explosões em raios-gama, galáxias e quasares). Os riscos que se vêm marcados têm a ver com marcações feitas durante a discussão que se encontram em mais pormenor na Figura 2.
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Figura 2 - Página de Augusto et al. (2011), que inclui (em baixo) um gráfico da Sky and Telescope, Feb10, p.14 (cf. Figura 1) com os recordes de redshift ao longo dos anos, para três tipos de objecto astronómico (explosões em raios-gama - GRBs – galáxias e quasares). Durante a nossa discussão, extrapolámos cada curva até 2020 (e mais), isto após termos marcado o recente recorde de uma galáxia a z=8.6 (segmento de recta para cima primeiro e para a direita no final). Os círculos indicam momentos chave. Note-se a dúvida na extrapolação para as galáxias (ponto de interrogação) e a escala em redshift que vai até 14 (mesmo que não muito visível). Para além disso, discutiu-se a noção de redshift e a importância do LOFAR (ver texto) – canto inferior esquerdo da figura.
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Antes da parte final da discussão, voltámos ao conceito de redshift (o esticar das riscas para comprimentos de onda localizados no produto de z+1 pelos originais) e falámos no LOFAR (www.lofar.org) – Figura 2 – e no objectivo deste de detectar a risca de hidrogénio do rádio (lambda=21cm) desviada para o vermelho (redshift) para os metros (10-250 MHz) para as primeiras galáxias que se formaram (z~10). Será que o LOFAR vai ser o próximo instrumento a descobrir uma galáxia a distância recorde? Em 2020 já teremos o SKA (www.skatelescope.org) a operar em pleno e este será muitas vezes mais sensível que o LOFAR ou qualquer outro rádio-detector no mundo! Se não for antes com o LOFAR, será mesmo por esse ano com o SKA que chegaremos aos z~10 (e mais?) com galáxias.
E atacámos, então, a parte final. A descoberta da galáxia a z=8.6 por Lehnert et al. (2010) não foi uma surpresa assim tão grande. Foi a confirmação formal por espectroscopia (o único método fiável, ainda hoje, para medir distâncias a objectos astronómicos extragalácticos) da primeira de muitas galáxias suspeitas de estarem a z~8-9. Porquê? Bem, tudo começa com o HST (Hubble Space Telescope – http://www.stsci.edu/hst/) e as suas “Deep Surveys”. Já fez três, ao longo dos anos, dois Hubble Deep Fields (no norte e no sul) e a mais recente Ultra Deep Field (UDF – http://www.stsci.edu/hst/udf), onde a galáxia a z=8.6 constava também. Esta era, simplesmente, das mais vermelhas da amostra de galáxias candidatas a redshifts de 8-9 (e.g. Lehnert et al. 2010). E é aqui que começa a questão: o que quer dizer a galáxia ser “vermelha” e sê-lo mais que as outras? Tem a ver com a forma como dividimos a luz visível (que vai dos 400nm (azul) aos 700nm (vermelho)). De facto, podemos fazê-lo de forma branda (fotometria, em até 100 partes, mas mais tipicamente em dez partes daquela banda: e.g. um filtro dos 400nm aos 430nm, outro dos 430nm aos 460nm, etc. até ao último dos 670nm aos 700nm); ou de forma mais detalhada, com espectroscopia. O limite técnico actual chega à divisão da banda em cem mil partes (e no infra-vermelho (IV) chega a um milhão)! Ou seja, uma separação tão fina quanto 0.03Å, o que é fabuloso. Isto é, logo que haja fotões suficientes para tal e é aí que entra o VLT (http://www.eso.org/public/teles-instr/vlt.html) – Very Large Telescope, que foi o instrumento utilizado (no infra-vermelho) para a descoberta e é, neste momento, o telescópio mais sensível do mundo. Ora, a fotometria é indicativa mas é poderosa, quando feita com muitos filtros, como o é hoje em dia (especialmente com o HST). As galáxias têm várias características no espectro que saltam à vista mesmo em fotometria. Por exemplo, existe o chamado “salto do Cálcio” (Figura 3), junto a uma risca deste elemento, que é óbvio em observações fotométricas detalhadas. É daqui que vêm pistas sobre os valores de redshift e é assim que sabemos que haverá ainda mais galáxias com z~8-9 no UDF para confirmar espectroscopicamente. E quanto mais vermelha (fotometricamente) maior a probabilidade dessa côr ser devida a um elevado redshift. Será que vamos chegar no óptico/IV a confirmar galáxias a z~10?
E a discussão parou aí, pois fomos convidados a sair do restaurante (para que este pudesse fechar) pelas 22h50. Também já é hábito ficarmos mesmo até ao fecho! Por acaso, nesse preciso momento, falávamos da falta de publicidade a descobertas europeias comparadas com as americanas na própria Europa! É que esta era uma descoberta integralmente europeia (investigadores e equipamento). E ninguém ouviu falar dela (não faltou a adequada press release do ESO, que agora também sai em português – http://www.eso.org/public/portugal/news/eso1041, com extracto na Figura 3). Será que a culpa é mais dos astrónomos ou mais dos jornalistas, que selecionam a informação?
Chegámos à UMa pelas 23h00 e esperámos 5 mins pela chegada do segurança, que tinha ido fazer a ronda, para nos abrir a porta. Fomos, depois, para o LAI e começámos por alinhar e colimar o Mizar. Depois abrimos a surpresa da noite: o novo telescópio do GAUMa, um Celestron Maksutov de 4 polegadas (com sistema automático GoTo). Alinhámo-lo no LAI e inicializámo-lo (colocando a latitude e a longitude e a hora) – Figura 4 – e subimos para o terraço pelas 1h00 para a “primeira luz”. Muito fácil de transportar e montar, este vai ser o nosso novo telescópio de serviço para todos os eventos, excepto quando formos para a serra (pois aí, realmente, o Meade ou o ASDoT destacar-se-ão). Lá o montámos, lá o alinhamos pelas “estrelas” (três objectos, de facto Júpiter, Rigel e Capela e, fantasticamente, ele adivinhou quais eram e auto-alinhou-se) Tudo num instantinho. E foi num instantinho também que a primeira luz foi efectivada a observar Júpiter com os seus quatro satélites galileanos todos do mesmo lado e as suas bandas atmosféricas bem visíveis! Uma espectacular visão e uma impressionante primeira luz. Seguiu-se Urano, fabulosamente e inconfundivelmente azul, contra as estrelas brancas em seu redor. Quem nunca viu não sabe o que perde. E vimo-lo claramente como um pequeno disco, mesmo apesar do seeing não estar famoso. Chegou, depois, a hora de uma estrela: a honra coube a Mira (o Ceti) pois esta está numa fase de brilho máximo especialmente prolongada para o habitual (grandeza 3). Tentámos ver o Cometa Hartley 2, que já devia estar com grandeza 7, mas foi mesmo impossível distingui-lo, até porque o brilho limite do céu (com o telescópio) deveria estar mesmo por aí (grandeza 7). Concluímos, então, a noite com a observação de M45 (as Plêiades), de M42 (Nebulosa de Orion) e das Plêiades outra vez. Depois de arrumar tudo no LAI, saímos da UMa pouco depois das 2h30, extremamente satisfeitos. Temos telescópio!
Figura 3 - Mais um esboço feito durante a nossa discussão. Este ilustra (em cima à direita) o óbvio “salto do Cálcio” que, para uma galáxia local, aparece num comprimento de onda de cerca de 500nm, mas para uma distante (e.g. z~8-9) pode entrar bem dentro do infra-vermelho (IV). Ilustram-se, aproximadante, as bandas fotométricas Johnson no visível (BVR) e no IV – IKLM. O esboço foi feito sobre uma press release do ESO a propósito do artigo de Lehnert et al. (2010) - www.eso.org/public/portugal/news/eso1041.
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Figura 4 - No LAI, o Elder e o Hildegardo alinham o buscador do nosso novo telescópio e ultimam os preparativos para fazermos a “primeira luz” no terraço.
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Pedro Augusto
Referências:
Augusto et al. (2011), O Universo, UMa, em preparação.
Lehnert et al. (2010), Nature, vol.467, p.940.